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segunda-feira, 27 de dezembro de 2010

Tempo, uma questão de opção

Ah, o tempo! Essa coisa tão medida, tão preciosa, tão disputada, tão valiosa! O que fazer do tempo? Afinal, quem manda em quem, sou eu que mando no tempo ou ele que manda em mim? Como distinguir o senhor e o servo? Como evitar “ser tragado” por ele?

Os gregos resolveram, em parte, esse problema tão inquietante nos nossos dias. Resolveram criar duas palavras para designar dois tipos de tempo diferente. A primeira, o tempo cronos, significa o único termo que a língua portuguesa utiliza, com seus diferentes sinônimos: tempo mensurável pelo relógio e pelos astros. Esse é o tempo que nos restringe, inquieta, interpela, irrita e nunca parece bastar para fazer o que necessitamos.

A outra palavra grega para “tempo” é kairós. Este tipo de tempo é aquele que não se mede, é interior, espiritual, pleno, profundo. É pessoal, mas universal. Seu efeito atinge os que participam dele e os que lhe são indiferentes. Ao perceber isso, os cristãos dos primeiros séculos passaram a utilizar essa palavra para designar o “tempo da graça de Deus”, o kairós de Deus.

Na verdade, ambos os tipos de tempo foram criados por Deus. São, portanto, criaturas de Deus, como as nuvens, o ar, a água. Deus age em ambos e através de ambos. Quando Jesus se encarnou, ele encarnou-se no “tempo cronos”, mensurável, histórico, preciso. Entretanto, ao encarnar-se e nascer, ele transformou este tempo cronos em tempo kairós, tempo de graça, tempo da graça de Deus.

O Verbo se fez carne e habitou entre nós. Ele, o Senhor do tempo, submeteu-se ao tempo cronos para transformá-lo em kairós. Obviamente, isso não é coisa de pouca monta. Trata-se da transformação da história da humanidade, a transformação de sua mentalidade humana em mentalidade divina. Diz respeito à inserção palpável do tempo kairós no tempo cronos. Com Jesus, podemos viver escravizados pelo tempo cronos ou libertos pelo tempo kairós.

Alienação? Zen? Nada disso: sabedoria. Se vivermos sabendo que Deus e, portanto, nós somos os senhores do tempo cronos, ele se transforma em kairós. Ao passar a administrar o tempo e submetê-lo a Deus, seu verdadeiro dono e criador, passo a conviver com ele como uma chance de viver para Deus, de enxergar a graça de Deus em cada minuto passado, presente ou por vir. Passo a viver o tempo kairós sem deixar de viver o tempo cronos.

Tenho 10 minutos para chegar ao trabalho, estou a 100 metros do prédio e o trânsito simplesmente não anda. Nervosismo e desespero? Jamais! O cronos foi transformado por Cristo em kairós. Ele sabe de tudo. Sabe por que o transito não anda, por que estou preso aqui e, como me ama, faz sempre o melhor para mim. Aproveito, então, o tempo que me é concedido como kairós: canto, rezo, ouço músicas ou palestras sobre o Evangelho, rezo o terço, louvo o Senhor da minha vida e do tempo.

Quando vemos o tempo como nosso senhor, como o indomável cronos, lidamos com a raiva que temos dele, lutamos contra ele o tempo todo, vemo-lo como um adversário invencível a quem, cedo ou tarde, teremos que nos submeter se quisermos ser alguém na vida.

Quando o vemos como nosso servo, um presente de Deus para melhor amá-lo e servi-lo, o tempo que percebemos é o kairós, ainda que inserido no cronos. Acolhemo-lo com alegria, enchemo-nos de gratidão para com ele que passa a ser para nós tempo da graça de Deus. Aquele tipo de tempo que a gente deseja nunca acabar: o tempo que mede o amor, a amizade, a oração, o carinho, a ternura, o dar-se ao outro por amor, a compaixão, a solidariedade, a partilha, a piedade.

Embora muitas vezes estraguemos esta percepção, o nascimento de Jesus é, essencialmente, kairós. A observação mais superficial de como o festejamos indicaria exatamente o contrário. O trânsito infernal, a lista de presentes, a preparação da ceia, a corrida para comprar o presente esquecido, a roupa que não foi passada, o sapato novo que prolonga o martírio, a impaciência, as repetidas olhadelas para o relógio, a correria de uma residência para outra, tudo denuncia o tempo cronos, implacável e indômito senhor a nos fustigar.

Entretanto, em sua essência mais verdadeira, o Natal não deixa de ser um kairós. Um autêntico, profundo e pródigo tempo de graça, tempo da graça de Deus. Toda a graça do Deus Vivo está à nossa disposição. Nele, o Todo Poderoso, se torna um recém nascido. Nele, o Forte se torna frágil, o Rico se torna pobre, o Livre se torna dependente para que nós sejamos livres. Será que é por isso, por nossa rejeição natural a esse abaixamento de Deus, por nosso medo de participar desse tipo de graça de não “ser alguém na vida”que insistimos em abafar esse incomparável kairós, sufocando-o com o nosso cronos?


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por Maria Emmir Nogueira, Co-fundadora da Comunidade Shalom *
Fonte: Formação Shalom

quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

Magnificat, o cântico de Maria

Magnificat” é o título latino dado ao “Cântico de Maria”, o belo poema de Lucas 1, 46-56. Mas se engana quem pensa que Maria pronunciou tudo aquilo de improviso, dando uma de “repentista”.

O poema é uma coletânea de versos extraídos do Antigo Testamento, tendo como pano de fundo o chamado “Cântico de Ana” (cf. I Sm 2,1-10).

E, nesse sentido, é poema de mulheres pobres, não só por marcar o encontro de Maria e Isabel, mas por se constituir em memória de um grupo que por nós precisa ser conhecido mais profundamente.

Ao atribuir o poema a Santíssima Virgem Maria, a comunidade de Lucas quer, entre outras coisas, afirmar que a jovem mãe fazia parte dos pobres de Deus.

Desde a época da destruição do país pela Babilônia, que aconteceu por volta de 587 a.C., o povo israelita começa a esperar o restaurador do reino davídico, o Messias.

Com o passar do tempo, vão se constituindo grupos e partidos, cada um com sua teologia própria, cada um esperando um messias que viesse satisfazer seus interesses. Começam a se formular compreensões diferentes dessa figura.

Os fariseus, por exemplo, aguardavam a chegada de um messias que viesse restaurar o reino davídico a partir da exigência do cumprimento total da Lei de Moisés. Os zelotas, por sua vez, aguardavam um messias guerrilheiro que expulsasse a dominação romana por meio de uma revolução armada.

Apesar dos poucos registros históricos, sabemos da existência de um outro grupo que se reunia para louvar ao Deus dos pobres, na espera de um messias que viesse do meio dos pobres, tal como havia profetizado Zacarias: “Eis que o teu rei vem a ti; ele é justo e vitorioso, humilde, montado sobre um jumento, sobre um jumentinho, filho da jumenta” (Zc 9,9). Trata-se dos ‘anawîm, os pobres de Deus.

Desse grupo faziam parte, provavelmente, Isabel e Zacarias, os pais de João Batista, justos diante de Deus (cf. Lc 1,5-6); o justo e piedoso Simeão, que aguardava a consolação de Israel (cf. Lc 2, 25); a profetiza Ana, com seus oitenta e quatro anos de sonho e esperança (cf. Lc 2, 36-38). E Maria, com seu noivo José, que também era justo, conforme Mateus 1,19.

O termo “justo” é um adjetivo frequentemente atribuído às pessoas participantes do grupo dos ‘anawîm. É notável a liderança das mulheres entre eles [‘anawîm]. Muito provavelmente em seus momentos de encontro, de oração, elas iam coletando frases do Antigo Testamento e compondo canções como o Magnificat.

Os capítulos iniciais do Evangelho de Lucas recolhem ainda o chamado “Cântico de Zacarias” (cf. Lc 1, 68-75), outro exemplo desses poemas. Nossa Senhora sabia de cor essas canções, elas eram a história do seu povo. Composição de mulheres que conhecem bem as Escrituras

Numa cultura na qual as mulheres não tinham acesso às letras, chama a atenção como, no Magnificat, se fazem presentes os textos bíblicos.

É evidente a força feminina na manutenção da história por meio da memória oral, visto que a escrita estava ligada a pequenos grupos, normalmente de homens detentores do poder. Assim percebemos como a Santíssima Virgem e as suas companheiras conheciam bem a história de seu povo e dela tiravam forças para lutar.

A principal fonte inspiradora do Magnificat é o “Cântico de Ana”, mulher estéril, por isso discriminada e humilhada. Na amargura, ela chora e derrama a sua alma diante de Deus (cf. I Sm 1,10.15). Mas sabe expressar a sua gratidão ao se tornar mãe de Samuel: “Eu o pedi ao Senhor” (1 Sm 1, 20).

Muito sabiamente, o redator de I Samuel a ela atribui o poema presente em 1Sm 2,1-10. “O meu coração exulta em Deus, a minha força se exalta, o arco dos poderosos é quebrado, os fracos são cingidos de força” (idem 1.4-5).

Entretanto, esse cântico [Magnificat] percorre vários livros do Antigo Testamento.

Isaías havia dito: “Transbordo de alegria em Javé, a minha alma se alegra, porque ele me vestiu com vestes de salvação, cobriu-me com um manto de justiça” (Is 61,10). Habacuc 3,18 diz algo semelhante: “Eu me alegrarei em Javé, exultarei no Deus de minha salvação”. A figura do “servo sofredor” também é retomada, quando o poema diz que o Senhor “socorreu Israel seu servo” (cf. Lc 1,54).

Em Maria acontece algo extraordinário: toda a sua alma concebe o Verbo de Deus, porque ela foi imaculada e isenta de vícios, guardou a sua castidade com pudor inviolável. Assim, com Nossa Senhora, engrandece ao Senhor aquele que segue dignamente a Jesus Cristo.

A Virgem humilde de Nazaré se torna a Mãe de Deus; jamais a onipotência do Criador se manifestou de um modo tão pleno. E o coração castíssimo de Nossa Senhora manifesta de modo transbordante a sua gratidão e a sua alegria. E então, canta: “A minha alma engrandece o Senhor e o meu espírito exulta em Deus, meu Salvador”.

Padre Bantu Mendonça K. Sayla

fonte: Homilia Diaria

quinta-feira, 2 de dezembro de 2010

Construamos o tripé sobre a Rocha

Reflexão de Evangelho Mt 7, 21.24-27

Não basta dizermos que somos de Deus, que somos batizados, que somos católicos, se a nossa vida não condiz com tudo isso. Uma vida sem testemunho, sem coerência, é tudo, menos vida cristã autêntica.

Muitas vezes, a falta de autenticidade na vida cristã não é fruto simplesmente da mediocridade e da duplicidade de vida; a grande causa é que ainda – na maioria das vezes – achamos que ser cristão é estar ausente de sofrimentos, lutas, angústias e cruzes. Convençamo-nos de uma coisa, meus amados irmãos e irmãs: quanto mais autenticamente vivermos a nossa fé, tanto mais as enchentes, os ventos e as chuvas darão contra a casa da nossa vida. Que interessante: a chuva vem por cima, as enchentes vêm por baixo e os ventos sopram os lados da casa. Para dizer que de todos os lados seremos afligidos, pois não pertencemos à sabedoria deste mundo cruel e desumano, que possui o demônio como o seu chefe – entendendo o mundo não como um ambiente físico-geográfico, mas como tudo aquilo que está fora da vontade de Deus. Sim, somos afligidos, mas não vencidos, pois o Senhor, a Rocha firme, venceu o mundo!

Para que a nossa vida seja sustentada sobre a Rocha firme, que é o Senhor, devemos montar o tripé – as sapatas da vida espiritual:

1º Oração: Santa Teresa d’Ávila é taxativa em dizer: “Quem reza se salva; quem não reza, se condena”. Precisamos viver em intimidade com o Senhor, fazendo com que nossa vida seja um Evangelho vivo escrito em obras e palavras, para que nossos irmãos possam ler e ser evangelizados.

2º Vida ascética: murmuramos e reclamamos muito da vida, dos reveses que nos acontecem; não queremos trabalho, sacrifícios, mortificações… Somos uma geração de gente fraca; por isso não aguentamos nada e acabamo sempre achando que os problemas estão fora. Aproveitemos as contrariedades da vida – as chuvas, os ventos e as enchentes – e as ofereçamos em sacrifício, em reparação; morramos para as nossas vontades, para as nossas ideias; façamos pequenos sacrifícios, fazendo das adversidades meios concretos de aprendizado. Na vida espiritual é muito salutar tomarmos os sofrimentos e, silenciosamente, louvando a Deus, ofertá-los ao Sagrado Coração de Jesus pela Sua Igreja. Onde estão os homens e as mulheres de sacrifícios silenciosos, a exemplo de Cristo na Cruz?

3º Jejum: Nossa Senhora em Medjugorje pede, em suas aparições, que venhamos a jejuar – a pão e água – duas vezes por semana (quartas e sextas-feiras). Faz de 50 a 60 anos que na Igreja do Ocidente o jejum tem sido esquecido na vida de muita gente batizada. Aqui está uma das causas pelas quais o demônio está “nadando de braçada” na vida de tantas pessoas. Foi o próprio Jesus quem afirmou que existem certos tipos de demônio que só podem ser expulsos pela força da oração e do jejum, segundo a Bíblia Vulgata.

Não olhemos para os reveses, para as chuvas, para as enchentes, para os ventos – eu repito. Mas olhemos para o tripé que precisamos construir, para apoiarmos a casa da nossa vida sobre a Rocha firme, que é Jesus Cristo. Nossa atenção deve ser voltada para aquilo que precisamos ser – cristãos – e no que devemos fazer – amar – e jamais termos a nossa atenção voltada apenas no que não conseguimos evitar: as contrariedades da vida.

Padre Pacheco
Comunidade Canção Nova

fonte: Homilia Diária Canção Nova

quarta-feira, 1 de dezembro de 2010

O milagre da cura é uma via de mão dupla

Reflexão do Evangelho Mateus 15, 29-37


Jesus, ao percorrer o mar da Galileia, resolve subir a montanha e aí ficar com o Pai. É muito interessante percebermos que, biblicamente falando, a montanha, muito mais que um lugar geográfico, é o lugar do encontro com Deus; mas, para que possamos nos encontrar com Ele, é preciso nos encontrarmos com nós mesmos – já diziam nossos primeiros pais na fé, os Padres do Deserto.

Partindo do pressuposto de que para nos encontrarmos com Deus é preciso nos encontrarmos com nós mesmos, podemos entender a passagem do Evangelho de hoje, no qual muitos acorriam a Jesus, na montanha, para serem curados de suas enfermidades. Muitos eram coxos, ou seja, não conseguiam caminhar, pois lhes faltavam uma perna ou as duas pernas. Quantos de nós também nos encontramos coxos, pois não temos a coragem de caminhar em direção aos outros para servir, para nos dispor em ajudar e amar as pessoas. Estes coxos perceberam que o problema estava não nas pernas, mas no coração; quando resolveram sair de si, foram curados, pois a cura começou a acontecer à medida que saíram de seu mundinho e foram ao encontro dos irmãos para servi-los e amá-los.

Muitos eram aleijados, ou seja, eram paralíticos com relação à capacidade de ir e vir. O ódio, o rancor e o ressentimento travam as pessoas; isso é comprovado cientificamente; quantas pessoas paralíticas há– não por questões físicas – mas pelo fato de não perdoarem os outros; a falta de perdão trava as pessoas, fisica, emocional e espiritualmente; quem não perdoa fica paralisado.

Muitos eram cegos, ou seja, não conseguiam perceber os outros e suas necessidades, pois muito presos estavam em si mesmos, nos seus problemas, no seu mundinho, no seu egoísmo. Como é difícil enxergar as necessidades dos outros! Aliás, enxerga-se muito mal, pois só enxergam os defeitos e as dificuldades dos outros e da vida; não possuem um olhar de esperança, mas de pessimismo a respeito dos outros e da vida. Esta é a verdadeira cegueira.

Muitos eram mudos, ou seja, não conseguiam falar uma nova linguagem, a linguagem do amor; sua fala estava fundamentada na murmuração, na reclamação, no pessimismo, contaminando a audição de todos que conviviam com eles; chega a um ponto em que a pessoa fica completamente muda às coisas de Deus.

Muitos estavam surdos e mudos, ou seja, porque não escutavam, não falavam, não queriam escutar a Palavra de Deus, pois a atenção deles estava voltada para aquilo que é diabólico: seitas ocultas – ocultismo –, sociedades secretas, nova era, etc…

Cada um na sua enfermidade foram curados, porque fizeram a sua parte, ou seja, reconheceram sua miséria e foram até Jesus. Meu irmão, minha irmã: em qual enfermidade você se encaixa e precisa, diante de Jesus, renunciar e pedir perdão?

Quando nos encontramos nestas enfermidades, vamos morrendo de fome. Somente depois de renunciar a tudo isso é que o Senhor poderá nos dar o Pão da Vida, que é Ele mesmo.

A Eucaristia é um milagre e comungar é um milagre, cuja via é de mão dupla, ou seja, ou comungamos de verdade – permitindo que Cristo entre na nossa vida e nós na d’Ele – ou comungaremos a nossa própria condenação: Jesus entra em mim, mas eu não me deixo entrar n’Ele.

Padre Pacheco
Comunidade Canção Nova

fonte: Homilia Diaria - Canção Nova